sexta-feira, 11 de agosto de 2017

O Macedo da Travessa da Glória





Não há dia que me desloque à Baixa lisboeta, com algum tempo livre, que não visite o Macedo da Travessa da Glória. Tanto quanto recordo, há quase quarenta anos que frequento os principais alfarrabistas da cidade, desde os mais finórios, da Rua do Alecrim - e, nesses, era só mesmo para ver os livros e admirar as suas lombadas gravadas a oiro, bem como as gravuras antigas, os mapas e as fotografias de época, pois os preços praticados eram-me interditos -, onde, não raro, encontrava escritores de vulto e nomes sonantes da nossa cultura, passando pelos alfarrábios do Bairro Alto, do Chiado, da Trindade e do Príncipe Real. E, se no início, o que me movia era a impossibilidade económica de comprar livros novos, restando-me como única opção o livro usado, ou manuseado, como eufemisticamente alguns prosaicos os gostam de apelidar, aquilo que começou como uma falta de alternativa, foi-se paulatinamente transformando num gosto e mais tarde num vício. Mas foram sempre os alfarrabistas modestos, aqueles cujo comércio são os livros manuseados, e não as preciosidades literárias, ou as edições raras e de luxo, que recolheram as minhas preferências. E ainda hoje assim é, pois, mais do que a beleza da capa e da contracapa do livro, que não desprezo, o que mais me importa é mesmo o conteúdo da obra.

Apesar de ter perdido grande parte das minhas capacidades olfativas e, com isso, algum do espólio desse repositório de memórias formidável, cada vez que entro na tabanca pombalina do Macedo, reconheço de imediato odores que sempre me foram familiares: a humidade entranhada nas paredes, o bafio mesclado com os cheiros indescritíveis que se desprendem das estantes esconsas, onde livros, que há quase um século não vêem a luz do sol, jazem amontoados uns sobre os outros. Um ambiente deveras impróprio para quem sofre de algum tipo de alergia ou renite, onde uma amálgama de odores, que se mesclam generosamente com os cheiros das frituras e dos vinhos, das casas de pasto que convivem paredes meias com o sebo do Macedo, entram sem parcimónia pela livraria, criando uma atmosfera olfativa de tal ordem que, ainda que me vendassem os olhos, quase podia adivinhar que me encontrava dentro do estabelecimento do alfarrabista da Travessa da Glória. 

O Macedo, tripeiro de gema, há muito radicado em Lisboa, vivendo para os lados da Almirante Reis, mas conservando uma inconfundível pronúncia do norte, é um homem esguio, seco, de rosto encovado e varicoso, chupado por uma vida de cigarros e tacinhas, de cuja boca sobressaem dentes escassos, de um amarelo acastanhado. Não raro, quando se emociona, pois está sempre a opinar sobre tudo, e o que era antigo é que era bom, espicha perdigotos, que se lhe depositam no canto da boca, mas dos quais rapidamente se livra, passando na boca a manga da camisola. O livreiro ainda mantém aquele ar de 'pintas dos anos 50': desafiador, irónico, fadista, amante de ditoches, falador incansável e armado com a sempiterna unharra multiusos do dedo mindinho, com que amiúde coça o interior dos ouvidos, adereço que sempre lhe conheci. Cada vez que me vê, todo ele é uma festa. Mima-me com o epíteto de "doutor" no começo de cada frase. Oiço-lhe as histórias de sempre, que aliás conheço de cor. A viagem ao Brasil, nos anos 60, e as peripécias no Rio de Janeiro com as brasileiras; a sua infância na Ribeira; os banhos no Douro, como os meninos do Anikibobó do Manoel de Oliveira; a vida boa que já teve; as inúmeras amantes que passaram pelo seu leito; a mulher, que é uma santa e tudo lhe tem aturado e desculpado. Julga-se, acima de tudo, um literato, porque vende livros há muitos anos e conhece títulos como ninguém. Faz questão em discutir comigo algumas leituras - diz que já não lê há uns anos porque as cataratas, entretanto, comeram-lhe os olhos - e fica radiante quando percebe que eu conheço muitos dos livros de que fala. A mulher tem uma venda de peixe no Mercado do Rego e só quer saber de telenovelas. O primitivo arrendatário do estabelecimento está cego, internado num lar, e agora é ele que tem de continuar sozinho à frente do negócio. A renda, antiquíssima, felizmente é simbólica, pois o dinheiro que atualmente ganha mal dá para o tabaco, para umas quantas tacitas e para comer qualquer coisinha. E o prédio, com cerca de trezentos anos, estala de podre. Mas que fazer? Os herdeiros do senhorio recusam-se a fazer obras e já lhe fizeram saber que até iam a Fátima a pé se ele algum dia resolvesse sair dali.

O Macedo acreditava em mim. Esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor. Dizia que eu era um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro. Falávamos de ópera e ele trauteava árias; comentávamos coisas do Camilo e do Zola e especulávamos sobre a enorme fortuna que ele teria se os livros de sebo que tinha em stock fossem libras de oiro. E ele ria-se sempre e cofiava o bigode amarelecido, que entretanto quase fez quase desaparecer com a ponta da unharra do dedo mindinho.

«Um santo natal para si e para os seus, Sr. Macedo, e obrigado por me aconselhar sempre "boas leituras". "Apareça sempre, doutor, nem que não compre nada, nem que seja para me visitar, pois enquanto nos virmos um ao outro, ainda que poucas vezes por ano, é sinal de que ambos estamos vivos.»

Jorge Rebelo

Sem comentários:

Enviar um comentário

Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...