domingo, 13 de agosto de 2017

Consenso e conflito


As lutas contínuas desgastam-nos, envelhecem-nos, separam-nos. Prefiro de longe o consenso ao conflito, a concórdia à guerra. E quando discordo em absoluto de alguém, inamovível e inconversável, regra geral, deixo-o falar sozinho. Evito pessoas inconciliáveis, que nunca dão o braço a torcer. Sempre que possível, evito o conflito, a escalada originada por uma discussão, que, não raro, descamba na irracionalidade e no débito de descargas emocionais absurdas, desajustadas e ocas, proferidas apenas com o fito de magoar.

Nessa fase, aquilo que parecia ser à partida uma saudável troca de argumentos, um desajuste que se queria ver ajustado, transforma-se numa espiral de agressividade. Naturalmente por defeito meu, que suspeito tenha a ver com a verbosidade enfática com que defendo certas teses, acontece que muitas pessoas sentem um prazer quase mórbido em me contrariar. Não que a atitude de contra-argumentar, a clivagem, seja pouco salutar, ou construtivamente incorreta. Antes pelo contrário. E não foram raras as vezes em que, à conversa com pessoas muito mais sensatas e lúcidas do que eu, depois de alguma introspeção, me tenha forçado a mudar de pensamentos e atitudes. O cerne da questão é outro. 

Refiro-me naturalmente à guerrilha em que rapidamente se pode transformar uma troca de argumentos contrários e inconciliáveis. E as tensões são sempre superiores quando as principais linhas de clivagem se situam no plano da moral, ou no âmago das formas primárias de subjetivar que respeitam a cada um de nós.

Quando a discussão tem por temáticas realidades mundanas, as tensões são indubitavelmente mais baixas, pois a capacidade negocial e conciliatória é maior. O que eu rejeito liminarmente é a querela fácil e brejeira e o transbordar agressivo de quem, por recusar ficar na 'mó de baixo', independentemente da justeza das ideias que contradita e apenas porque sente a sua estima maculada por um argumento que julga lhe está a ser imposto, reage com desproporcionalidade.

Todos queremos ser inovadores, donos da razão, seres únicos, dotados de uma armadura moral e de uma estrutura de pensamento assertiva. A natureza humana assim nos fez, dessa maneira formatada e irrevogável.

Eu sou, sobretudo, um homem de paz, de mimos e de amor, assumidamente lamechas, embora tenha um feitio assaz complicado. Sou temperamental e agridoce: tanto fervo em pouca água e descampo, como caio na lisura. Acho que vou envelhecer irremediavelmente assim. Gosto do bom humor e da doçura. Detesto a contenda e a crispação; e muitas vezes as minhas atitudes de 'fuga', e uma certa não sociabilidade, são confundidas com cobardia.

Há justamente quem pense que para mantermos íntegra a nossa personalidade, para nos sentirmos valorizados como pessoas, devemos ter sempre pronta na ponta da língua, uma resposta implacável e demolidora, como fora uma espada apta a ser desembainhada, perante um argumento ou uma crítica que nos desagrade.

Deixo essa gloriosa tarefa para os fazedores de opinião que ganham a vida participando em debates e contendas. Tenho uma estrutura de pensamento, arquétipos morais, vícios, preconceitos, contradições, tiques, e não sei quantos mais defeitos, com mais de meio século de sedimentação. Admito e agradeço que me mostrem o outro lado do espelho, me façam mudar de opinião, me coloquem num lugar onde a forma como perspetivo as coisas suporte um olhar diferente e me conduza a conclusões opostas. Não tenho é pachorra para corridinhas para ver quem chega em primeiro lugar, digladiações frustres, contendas onde a regra é ganhar o que berrar mais alto os seus argumentos e for capaz de colocar a voz duas oitavas acima.

Em troca desta consciente abdicação, aceito para a minha vida um acrescento de solidão, uma sociabilidade mitigada e uma seletividade cada vez maior na forma como escolho aqueles com quem interajo no tempo e no espaço - aquele que resta depois do trabalho, das minhas leituras, da minha escrita, da minha música, dos meus pensamentos. Depois dos meus tão queridos desertos de solidão, viro-me naturalmente para aqueles com quem tenho empatias, os que admiro e os que amo.

Jorge Rebelo

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Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...