terça-feira, 31 de outubro de 2017

Estava sossegada. Gosto de estar sossegada, absorvida no meu mundo autista e porque não? Nunca imaginei que este mundo tão meu fosse tão confuso para quem me rodeia... Todos nós sem excepção vivemos num mundo à parte dos demais, chama-se intro-especção, um casulo fechado onde reina somente a nossa imaginação! Gosto do mundo em que vivo, é meu, confesso que sou egoísta neste meu querer, de fora ficam as realidades que habitualmente consomem o ser humano, também o sou, humana. Não há forma plausivel nem descrições possiveis que abordem o mundo interior. Parte de uma aceitação própria, de uma realidade inconstante, cercada de movimentos tão estranhos mas gratificantes que se transformam numa adrenalina impossível de largar... Gosto de estar sossegada num desassossego permanente que me permite atingir as barreiras impostas pelos outros, alcançar a utopia das irrealidades... Sou eu, tanto falo sobre o meu eu, porque não? Eu e ele somos indivisiveis, não permitimos intrusões, somos uma partilha única e indestrutivel... O desassossego com que me movo é a prova constante de um crime só meu, não existe clausura nem código penal capaz de o condenar...Sou eu, sossegada na minha inconstante tranquilidade em que o constante não é mais que uma fracção de segundos até que a Utopia seja alcançada!
( Reservados os Direitos do Autor Lina Freitas)

domingo, 1 de outubro de 2017

Torcer o pipo

O meu pai torcia o pipo aos pombos, que eu bem me lembro. Mas não que os bichos o enervassem. Acontecia quando eles começavam a ser mais que muitos e a despesa se tornava incomportável ou então porque o pombal estava a ficar demasiado apertado. Eram fritos fritos em azeite, cebola, alho, uma folhinha de louro, refrescados com um pouco de vinho e, depois de tudo bem cozinhado, acrescentava-se um ovo ou dois. Era bom. A carne era escura e densa, muito gostosa. Mas vamos à torcedela de pipo. Eu não suportava ver o meu pai extinguindo a vida dos bichinhos, ver toda a cena afligia-me. Mas conheci o aparato. Lembro-me de vê-lo de costas, os braços tensos, adivinhava-lhe as mãos torcendo o pescoço, pressionando a veia jugular. Eu já só via os cadáveres em cima do muro, cabeças pendendo, olhos meio fechados, o corpo inerte. Ali por perto já havia um alguidar. Depois era escaldar, depenar, amanhar. Nestas tarefas eu ajudava um pouco. Gostava particularmente daquela parte em que o meu pai limpava as vísceras, ver a moela ser cortada e saírem de lá pedaços muito miúdos, mesmo desfeitos, de milho e outros cereais. Depois era a vez de a minha mãe tratar do resto, como já referi acima. O leitor não pense que me fazia impressão comer pombinhos, imaginando-os queriditos e fofinhos como se fossem bebés amorosos e com essa visão alguma tristeza me assolava a cabecita. Não. Afinal de contas eu ajudava (ou vigiava atentamente) na limpeza e preparação destas aves. Comia e pronto. Protegida pela lei da vida, talvez... A ordem natural das coisas, quiçá... Mas não me vejo a torcer pipos, lá isso não.



Gina G


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Naquele Cais



Morri de tanto esperar...
Onde marcaste o encontro, do nosso desencontro!

Sentada naquele banco frio
Olhando para o vazio
Vejo-te em tudo o que passa
Mas quem passa não és tu!

Porque me deixaste só?

Neste silêncio que gela
No meio de tanta gente
Só tenho por companhia
As imagens que eu queria
Da tua presença ... ausente!

De coração apertado 
E com um nó na garganta
As lágrimas molham-me o rosto
Levanto-me do banco frio
Retiro o olhar do vazio
E parto para o lado oposto

E agora sem destino
Vou por aí, não vencida
Meio perdida, por ti esquecida
Continuarei a procurar-te
Um dia hei- de encontrar-te
Em qualquer um Cais... da vida!

Teresa Lino Vicente


terça-feira, 29 de agosto de 2017

O menino perdido

Durante a noite, o menino levantava-se da cama. Caminhava pela casa vazia e às vezes cismava frente às janelas que pensava terem ficado abertas de par em par. Todos os dias era o mesmo. Deixava tudo aberto porque se sentia abandonado. Era uma casa grande, repleta de quartos e corredores intermináveis. Como criança que era, erguia os olhos ao céu e à noite e escutava lá fora o pranto dos campos. Escutava os grilos e as cigarras e julgava-os gambozinos. Nessa noite o menino olhou pela janela com os olhos muito abertos e tudo era uma escuridão enorme por não se saber onde terminavam aqueles frutos tão noturnos da vida. A casa também chorava com ele. Toda aquela casa envelhecia durante o tempo e por dentro o menino agastava-se com o seu próprio silêncio. Trazia em si aquele choro das magnólias e das hortênsias, vergadas sob o seu próprio peso, que já pendem para a terra. Aquele mesmo choro dos presentes nunca oferecidos, daqueles presentes para sempre esquecidos, para sempre ausentes no amor. O menino repetia para consigo mesmo: «um dia morrerei», e voltava a repetir: «tudo isto que eu vejo é transitório, todo este nada que eu sou é absolutamente transitório». E inclinava-se cada vez mais para o silêncio; e no seu coração mais cansado, a morte, terna mas petulante, aconchegava-se no seu peito como se fora o tão ansiado abraço do amor.

Jorge Rebelo

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Aquela pessoa

Há aquela mulher que foi à baixa e veio de metro para cima. Viajas frente a frente com ela e olha-la com curiosidade. Tem pousado no colo sacos de grandes casas, de lojas antigas. Lojas do tempo em que se chamava casas às grandes lojas. Nos sacos estão impressas as datas 1860 e 1923. Hum, casas muito antigas, sim... O ar compenetrado que ela apresenta é o de uma mulher que quer ser uma senhora, olha para o chão com altivez. Olhar para o chão com altivez é um contra-senso porque olhar para o chão revela timidez, pensas. Tu achas que cada mulher é uma senhora e vice-versa, não compreendes este querer parecer. Já doutros quereres entendes tu. «Din-don» soa a coluna de som do metro chamando à razão quem quiser sair na «Próxima Estação». A mulher/senhora/mulher levanta-se debaixo do mesmo olhar altivo, agora fita o vazio em frente. É que se aquela mulher/senhora/mulher não quer ir de encontro às coisas e arranjar nódoas negras é melhor levantar a cabeça, ao menos. Saiu. Oh que pena, nada mais há de interessante para veres.
Gina Grangeia

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

C
Cartas de amor
A mais bonita carta de amor que um dia poderia receber… "És um anjo, daqueles que não precisa de ter asas branquinhas como tantas vezes imaginamos!" Uma perfeita carta de amor me escreveste. Confesso uma coisa: imensas cartas de amor me foram enviadas por muitos seres de luz, mas tenho duas gravadas no mais profundo de mim. A tua e a de outro coração que não o meu, mas que sinto como tal! “ Cartas de amor quem as não tem!” Há quem as escreva nas linhas do tempo, escrevem-nas com gestos, ou também podem escrever com um simples olhar, ou preferem simplesmente falar… Como sabes, sou um misto de todas essas luzes, escrevo as minhas palavras na presença do luar! Não faço rascunho, já para nem me enganar. Escrevo vinda lá dos meus céus, trago alento à minha dor, escrevo com a ânsia do amanhã, de me ser permitido acordar! Escrevo com sentido ou sem ele, tento imitar-me ao me ler. Queria e vou querer sempre que a minha escrita seja uma constante nos confins do meu ser! Amo escrever, mais ainda o que escrevo e aquilo que ainda nem escrevi… enquanto escrevo, navego dentro de mim, neste mundo tão próprio e de tal maneira absorvente que me faz acreditar que estou aqui e agora! São rabiscos, são meus, sou eu...
( Reservados os Direitos do Autor Lina Freitas)

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Poente outonal

Assim vou aparentando a fantasia,
Neste final de tarde de um dia vulgar
Sem algo singular que valha a alegria
Destes versos que me apraz cantar;

Sou rolo de fumo, astro perdido,
Um vapor nulo de inspiração
Com a fé militante do poeta agradecido
Num dia a mais, sem celebração;

E dou-me todo neste poente outonal.
Sou espasmo de luz, brisa dos oceanos,
Aquele que define o capítulo final:
Acabar floricultor num bosque de enganos; 

Vivo há muito com o ensejo de não escapar
A enigmas que tanto me seduzem
Mas vou contendo-me, extraindo fôlegos do ar
Sonhando... sempre que as estrelas fulgurem; 

Amanhã, de novo espreguiçarei ao alvor
Esta vontade que reputo salutar,
Rendido ao melífero clamor
Desta crença por mim aberta de par em par.

Jorge Rebelo

Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...