segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Às vezes penso



Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras: sinto-me permanentemente vazio mas, simultaneamente, com um estranho lastro que me impede de voar, sequer andar, sequer querer o que quer que seja, adiando-me para outro século.

Às vezes também penso que seria fácil desculpabilizar-me, desculpabilizar-te, dizer a mim mesmo (dentro do espírito de “o copo partiu-se”, como se existissem copos com instintos suicidas…) que as decisões se tomaram, em vez de assumir que foram efetivamente tomadas ou, no mínimo, aceites. Também seria fácil ficar à espera que algo acontecesse, tentando apenas manter-me à tona da mágoa, não me asfixiando na angústia enquanto teu nome placidamente me percorre as veias, como lâmina sem destino.

Mas, felizmente, às vezes não penso. Por isso deixo-me arrastar pela suave ondulação do rio que foi nosso por breves mas incendiados momentos, pelas invisíveis correntes com que ele me abraça e que, todos os dias, inexplicável e implacavelmente, me arrastam até teus lábios de nuvem distante, onde me afogo lentamente com um ingénuo sorriso de criança.

Confesso também: às vezes não penso em mais nada que teu corpo que, num estranho parto e em dias de milagre, nasce dos meus olhos sob a forma de lágrima. E aí espero – por mais que eu o queira racionalmente contrariar - de novo por ti. Por ti Mulher, por ti Sonho, por ti Desejo – seja o que for, no entanto por certo maiúsculo.



terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Élio Isidoro Catalão Marofas



Élio Isidoro Catalão Marofas abominava o seu nome. Nunca se conformou com a bizarria que aflorara a mente da sua mãe, aquando do momento do seu batismo, que se lembrara de o presentear com tal graça. Há muito tempo que sentia bastante desconforto, associado a uma sensação de cansaço, falta de energia e vitalidade, para realizar as suas atividades habituais. Quando lhe perguntavam o que se passava, respondia que não era capaz de explicar. Mas não se sentia bem. Desde há um tempo, começara a colecionar objetos antigos e apenas se interessava por discussões e leituras sobre o tema. Comummente, em conversas entre amigos da sua geração, recordava a sua infância e juventude e os produtos culturais da época, os tempos em que fora realmente feliz. Entabulava este tipo de conversas como uma forma de escapismo e o presente pouco lhe interessava. Os outros escutavam-no, sabendo-o um bom orador e peroravam para que continuasse.
 
A saudade é o que fica daquilo que partiu, dizia ele, daquilo que já não é mais. Saudade é ausência, é o sentimento de vazio que fica daquilo que se foi. Mas às vezes, a saudade é um vazio tão grande que ocupa muito espaço dentro do coração, e aperta tanto o peito que acaba transbordando e escorrendo pelos olhos. São as lágrimas, o líquido precioso que escorre em abundância. Dizem que a palavra saudade, bem portuguesa, não tem tradução noutras línguas. Eu concordo em absoluto. Há quem diga que é sinónimo de nostalgia, mas, no rigor dos termos, não é verdade. Nostalgia representa mais uma sensação de saudade idealizada, por vezes irreal, por momentos vividos no passado, associado a um desejo sentimental de regresso. A idade traz-nos a saudade dos momentos vividos na nossa juventude, quando ser feliz era fácil com tão pouco e tudo era uma descoberta.
 
E o presente, a esperança, Marofas? – Perguntavam-lhe os amigos.

O presente é para mim uma espera por nada, uma delonga desnecessária, acrescentava ele. Toda a minha vida boa se desenrolou no passado. O que se passa agora já não me diz respeito. Limito-me a sobreviver. Camus dizia que toda a infelicidade dos homens nasce da esperança. A esperança é o começo da morte. A minha infelicidade começou quando cresci, quando perdi a inocência das coisas. Se não esperançarmos não nos faremos infelizes. E é possível viver num mundo que existe apenas dentro da nossa mente, alheios ao que nos rodeia no exterior. Num certo momento da vida, não é a esperança a última a morrer, mas a morte é a última esperança.
 
E porque não te matas, Marofas? Porque não colocas um ponto final nesse teu atroz sofrimento de viver? – Perguntavam-lhe os amigos. Porque não tenho a coragem de ser coerente a despeito de estar ciente desta forma de pensar, dizia ele.
 
As conversas decorriam habitualmente à mesa de um café, cercados pelo ruído provocado pelas vozes dos clientes e do trânsito que corria incessante na avenida principal. As palavras de Marofas soavam a um longo solilóquio. Uma espécie de declamação subjetiva que não incitava à participação dos outros tertulianos.
 
Já tinha passado mais de um mês desde a sua última preleção. Na mesa do costume, a mais perto da porta de saída, os convivas habituais estavam quase todos presentes. Comentava-se, ainda, a tragédia. A coragem, infelizmente, surgiu-lhe. A necessidade de buscar a morte como um refúgio para um sofrimento que se lhe tornara insuportável. Um mergulho para o nada. Ainda custava a acreditar. Élio Marofas ingerira mais de 100 comprimidos de Orfidal, uma benzodiazepina que proporciona relaxamento muscular, sedação e efeito tranquilizante. Encontraram-no, passadas duas semanas, morto, na cama, meio despido e em adiantado estado de putrefação.
 
À mesa, nesse dia, todos os restantes tertulianos concordavam que a esperança corresponde à aspiração de felicidade existente no coração de cada pessoa e que quem perde a esperança mais profunda, perde o sentido da sua vida; e sem esperança viver não tem sentido. Faltava, no entanto, alguém com poder oratório capaz de verbalizar esse ensejo por todos partilhado e de sustentar com firmeza essa tese. Todos concordavam que ao Élio tinha faltado a esperança e uma eventual vacina contra o desânimo, capaz de lhe fazer desejar viver e esperar a felicidade. A necessidade da esperança era um dogma por todos aceite, bem como a validade do ato de viver. A pergunta surgia então como inevitável: haveria algum deles, em algum momento, capaz de verbalizar tão bem quanto o Élio este sentimento por todos partilhado? Ou seria fatalmente necessário ser-se como ele: deprimido, desesperançado e nostálgico, para possuir a verve necessária à boa prosa das palavras certas e incertas?


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Pingo Doce - Heróis de Angola





Apesar de nesta vida já ter palmilhado quase seis décadas e da miséria, os infortúnios, a dor, as injustiças e, de um modo geral, o sofrimento, próprio e/ou alheio, não constituírem surpresas para mim, ainda não perdi a capacidade de me espantar com certas coisas. O que faz um jovem, com vinte e poucos anos, sentado no chão, à porta do Pingo Doce, acompanhado de um pincher empoleirado num banco, tocando acordeão? Pede dinheiro, com certeza. Mas porque motivo? Qual a sua história de vida que o fez desviar-se dos percursos normais da maioria dos jovens: estudo, trabalho, estruturação de bases sólidas para a sobrevivência em sociedade? O que foi feito pelas nossas instituições, na sua grande maioria, sustentadas pelos nosso impostos, para ajudar este jovem?

Na Europa Comunitária animam-se processos para a criminalização dos Sem-Abrigo e dos pedintes, como se, ser Sem-Abrigo – não ter teto nem casa – fosse um crime! Assiste-se, em muitas áreas, a verdadeiros retrocessos civilizacionais, como se o azar não pudesse, um dia, bater à porta de qualquer um de nós!

Há exemplos, bem concretos, da aplicação de sanções para mendigos, e para quem os ajude: a proibição da mendicidade e a criminalização de quem pede esmola na Noruega, por exemplo, é uma amostragem da perseguição e da criminalização de que têm sido alvo os Sem-Abrigo na Europa. Em Setembro de 2013, o Parlamento Húngaro aprovou legislação que permite aos seus municípios impor multas, serviço comunitário e até pena de prisão, a pessoas sem-abrigo. O presidente da Câmara de Verona – Itália – diz que os Sem-Abrigo são “uma ameaça à saúde pública”, pelo que, quem decidir alimentá-los, incorre numa multa entre 25 e os 500 euros!

Em Portugal, algumas pessoas, de grande responsabilidade nas áreas sociais, recomendam “bom senso”. Eu alinho nesse tom, totalmente. O que é preciso é mesmo isso. Indagar sobre cada caso, com as suas particularidades - não há histórias de vida iguais - e tudo fazer para ajudar quem carece de apoios.

Mais de 46 anos da minha vida foram passados em Lisboa e nos seus arredores, onde os problemas sociais são bastante mais sérios do que em Leiria. Habituei-me a ver, no dia-a-dia, a miséria nas suas formas mais sórdidas, mas nunca perdi a capacidade de me indignar. Uma pessoa que dorme na rua e se alimenta dos caixotes do lixo (visões muito comuns na Lisboa dos anos 80), hordas de Sem-Abrigo, fazendo das arcadas do Terreiro do Paço o hotel dos desafortunados da vida, todas as noites envoltos em mantas mal cheirosas e pedaços de cartão, ou agora um jovem de tenra idade a pedir esmola, são situações que deveriam envergonhar quem administra o nosso dinheiro e o gasta com primazia em subsídios tauromáquicos e outros degradantes espetáculos perdulários. Urgente e primordial é isto!

Leiria, Avenida Heróis de Angola, 09122019

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Seeking Sole Mates



Li algures sobre um método infalível para encontrar o par da meia perdido. A ideia básica é separar em categorias - por exemplo, cores. Começa-se por dividir as meias assim: uma pilha de meias cinzas, outra com as pretas e uma terceira para as brancas. Depois, escolhe-se outro critério, como o comprimento.

Isto não é mais do que a aplicação do método dedutivo (do geral para o particular), ou a modalidade de raciocínio lógico que faz uso da dedução para obter uma conclusão a respeito de determinadas premissas - no caso em apreço aplicado a meias.


Mas, sem ofender as premissas da Lógica, que muito respeito, acabei de adotar um método amplamente mais eficaz. Caso demore muito tempo a encontrar o par da meia, coloco as meias perdidas num saco de plástico, a aguardar as que virão de novas lavagens. Se jamais aparecer o par correspondente, passam à categoria utilitária de panos para engraxar, ou coisa que o valha. Mas mais eficaz do que todos os métodos, a partir de hoje só compro meias rigorosamente iguais. É a chamada solução final.

Esplanada do Central



A esplanada do Café Central de Almada, lugar de pouso do outono da minha infância e, posteriormente, de grande parte da minha juventude, à tarde, é lugar de suecada. Sexagenários e septuagenários, em alegre algazarra, competem por moedas, com assistência dos jogadores de bancada - que ora apupam uns, ora incitam outros. Quem diria que este celebérrimo café estaria destinado a transformar-se numa arena, onde idosos se batem fervorosamente pelos ases e pelos trunfos numa gritaria insana e ensurdecedora?!


Em meados dos anos 70, durante os anos 80 e até ao início dos anos 90, a esplanada do Central acolheu intelectuais, drogados, traficantes, estudantes, professores, ladrões, parasitas sociais, filósofos, políticos, músicos, poetas, pintores, ativistas e quejandos. Era difícil encontrar um lugar tão heterogéneo em toda a cidade. Célebres eram as noites em que se transformava na arquibancada onde se podia assistir aos ralis noturnos. Os competidores desciam, a velocidades alucinantes, a avenida D. Nuno Álvares Pereira e, chegados à rotunda da ex-Praça da Renovação (mesmo defronte da esplanada do Café Central), faziam piões e chiavam os pneus de tal forma que o cheiro a borracha queimada fazia-se sentir nas narinas. Só quando aparecia o "Nívea", o velho Volkswagen azul e branco da PSP, é que toda a gente debandava. Horas mais tarde, as corridas recomeçavam noite dentro. Não raro, havia despistes contra as montras de lojas.

Almada está cheia de reformados. Gente que trabalhou uma vida inteira e que contribuiu para agora merecidamente gozar o outono da vida. Mais difícil é conceber que a tolerância chegasse ao ponto de permitirem a transformação da esplanada de um café num casino de rua. Não faltam, na cidade, locais mais apropriados para a reunião e o convívio das cartas. Mas a centralidade do lugar apetece e, sobretudo, a complacência das autoridades e dos empregados do café, permite aos velhos algo que a outras idades seria reprimido. Os velhos já arrastam consigo a penosidade da idade e, muitas vezes, da solidão e da doença. Quem sabe não seria cruel afugentá-los da esplanada, como se fossem pombos portadores de maleitas. Não tarda, a sua vida some-se e os novos suspiram por poder chegar à idade da matiné das suecadas no Café Central.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

De olhos fechados



No começo há a esperança. É ela que motiva o mais pequeno dos meus atos vitais. Sem ela, a minha existência desmorona-se, na passividade, na prisão do instante, sem futuro nem passado. No deserto absoluto das minhas certezas, quando já não sei se vale a pena esperar nem em quê, continua a ser possível esperar. A esperança suporta a ausência absoluta de saber; sobrevive à incerteza e ultrapassa mesmo o fato de nada saber sobre si própria. A esperança pode assumir a extrema pobreza da ignorância radical, mas aparece sempre como um dom que recebo de braços abertos e um sorriso vindo do coração. Ela não aparece assim sem mais nem menos. É, antes de mais, um ato de vontade. Decido ter esperança porque sinto que é a melhor atitude face à vida e a minha opção em ter esperança provoca o seu aparecimento e fá-la aumentar. É o resultado da adesão mais primordial à vida e provoca as melhores disposições. Orienta-me no sentido de tudo aquilo que não tenho e até de tudo que, talvez, nunca terei. É essa a razão pela qual ela pode sobreviver em mim, ainda que na maior das pobrezas.


Em virtude de certos dramas que vivi – alguns deles, aliás, continuam, ainda hoje, a ser territórios de silêncio – talvez tenha acreditado que poderia desperdiçar-me eternamente em desesperanças. Seria o ódio pela vida? Será que todos nós estamos sujeitos, a um dado momento da nossa existência, à ausência de sentimento e de desamor? Em virtude desta incompreensibilidade para comigo mesmo, sabia que a ancilose da incapacidade de amar também pairava sobre mim. Também havia algo, no meu próprio interior, que se estragara: a capacidade de ternura sem a qual a vida perde os seus momentos quotidianos de felicidade…

Relembrar-me criança, retornar aos tempos da inocência plena, é um dos meus exercícios recorrentes, como um encanto a que inexoravelmente não consigo resistir. Entrar em relação com o petiz que fui, relembrar tempos de felicidade imensa assentes unicamente em plataformas de simplicidade, na forma não complexa com que concebia o que me rodeava, comove-me e refresca os diálogos constantes que travo com a minha existência. E neste momento presente, procuro o silêncio mais extremo: não a sonolência, antes uma vigília extremamente aguda, desconsertando os pensamentos perturbadores do dia-a-dia, protegendo o espírito do turbilhão irritante de certos pensamentos, desviando a atenção de tudo quanto oprime o meu quotidiano e abrindo portas ao silêncio e à minha tão almejada paz interior.

De olhos fechados, sei que o amor e os afetos são a maior das esperanças: amar e ser amado; e parece tão simples dito assim, tão singelo para poder ser verdade que quase parece mentira; e repito-o de olhos fechados pois sei-o de cor. *

*(Escrito há quase dois séculos e repescado de um baú poeirento. O sentido das palavras corresponde à matriz, ao tempo e ao contexto em que elas foram vertidas, já que a nossa vida é como uma girândola em constante rotação).




quinta-feira, 29 de março de 2018

Mensagem Poema



Tu... surgiste do nada, simples e hesitante, e aos poucos começaste a ser muito. Tanto que até assusta, arrepia e perturba

Tu... és um menino homem que tanto sabe ser forte,determinado, proteger e acarinhar, como tenta pedir colo, mimo e carinho.

Tu...és o meu maior medo e o meu maior desejo.

Tu...és o meu Rei e eu a tua Rainha.

Tu...és o meu maior sonho e o meu maior pesadelo.

Tu...podes ser tudo para mim e eu não ser nada para ti. Eu...posso ser tudo para ti e tu não seres nada para mim. Mas algo me diz que vamos ser muito um para o outro Que o tempo vai correr, voar, que se vai desvanecer como areia de praia entre os dedos como ondas que batem na areia e regressam ao mar.

Tu... és um mistério que vou desvendar Eu...sou uma poesia que tu vais ler. Nós... vamos ser o que desejarmos, quisermos e pudermos. Nós...vamos ser laços que se vão criar e nós que se vão atar. Tudo pode acontecer... basta um olhar, um toque, um sinal, um cheiro, um som ou um beijo Basta seres fogo e eu palha, basta seres água e eu sede. 

Tu queres... eu quero. Tens medo, eu também. Mas o que é a vida sem medos, desafios e segredos? Uma tela por pintar, um arco íris a preto e branco. Então que caminho seguir? Em frente, para trás não tem nem faz sentido. Se tu virares à direita e eu à esquerda nunca descobriremos o que está no fim do caminho. Seguir em frente é uma escolha, uma opção, uma decisão. Pode ser o sentido errado ou pode ser o sentido mais certo. A certeza é uma, nós escolhemos e decidimos. Parar não é opção, é apenas indecisão. E quem é indeciso não vive, apenas sobrevive. Vamos em frente viver, ou vamos apenas sobreviver? Eu escolho seguir em frente e tu? Tu...só tens que escolher também. 

Maria Carvalho Amador

Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...